República de Cospaia: da ascensão ao declínio
Contexto histórico
A Itália da Idade Média era certamente muito diferente da Itália atual (nascida no século XIX), a maior parte da península fazia parte do Reino da Itália desde o século IX por conta da divisão do Reino Franco após a morte de Carlos Magno, porém, lembremos que a Idade Média é marcada pela inexistência dos estados nacionais modernos, o feudalismo e a vassalagem, o que levou ao Reino da Itália (no fim século XII, reinado de Frederick Barbarossa) ruir e dar espaço aos nobres locais.
Com o fim da “unidade” italiana (entre aspas, já que o Reino da Itália por mais que unificado era bastante descentralizado e o rei não tinha muita autoridade de facto, típico da época) a península se viu dividida por centenas de anos, onde ducados, principados e repúblicas independentes competiam entre si, principalmente no âmbito econômico
Antecedentes
É nesse contexto que a República de Cospaia nasce, mais especificamente na segunda metade do século XV, por conta de problemas nos Estados Papais (os territórios pertencentes a igreja no centro da Itália, um dos mais importantes estados da região). O Papa Eugênio IV estava tendo muitos problemas com o Concílio de Basileia-Ferrara-Florença, o que o levou ao ponto de ter que apelar a guerra para manter a autoridade sob a igreja, isso tudo custou dinheiro, obviamente, e o Papa acabou recorrendo a pegar dívidas a um grande banqueiro da época: Cosimo di Giovanni de’ Medici.
A dívida foi de 25,000 moedas de ouro (cerca de US$ 3,500,000 atualmente), e para garantir que Eugênio pagaria ela, um acordo foi feito: a cidade de Borgo San Sepolcro e seus arredores (parte dos Estados Papais), no centro da Itália, seria dada a Cosimo caso a dívida não fosse paga (Lembrando que Cosimo era “Lorde de Florença”, então isso significaria ganhos a vizinha República de Florença).
Essa dívida foi pega em 1431, e dez anos depois (1441) chegara a hora de pagar, coisa que o Papa não conseguiu fazer, e teve que dar as terras que prometeu no tratado. Representantes da República de Florença e dos Estados Papais se encontraram para traçar os territórios perdidos pelo Papa, e após as negociações o tratado foi assinado, porém, cada um lado interpretou o tratado de forma diferente, principalmente por desentendimentos no rio Tibre, e no fim as “terras de dívida” do Papa se tornaram uma disputa territorial.
Proclamação da República e história de Cospaia
Quem também estava incluído nessa disputa era o vilarejo de Cospaia, que teve uma atitude muito diferente na região. Quando os moradores da vila descobriram da confusão do tratado, logo perceberam que estavam livres de Florença e de Roma, a “República de Cospaia” foi imediatamente declarada com brasão e bandeira, o lema da recém criada micro-nação descreveria o resto de sua história em uma única frase: Perpetua et firma libertas (eterna e firme liberdade).
Por mais que proclamada debaixo do nariz do Papa e de Cosimo, ambos estavam ocupados demais com as negociações da fronteira, e acabaram por aceitar a existência de Cospaia como um “estado tampão” entre os dois, afinal, era uma vila com cerca de 300 pessoas que não atrapalharia ninguém (ao menos, era o que pensavam).
A vila se tornou uma zona livre de impostos, mercadores de toda a Itália agora se interessavam em ir a Cospaia por sua liberdade comercial e a facilidade para acumular bens (já que como dito, não foram instituídas taxas), judeus também eram atraídos a vila, já que Cospaia não os discriminava (diferente do resto da Europa), e por isso o comércio entre cristãos e judeus se tornou comum na República, ajudando o crescimento econômico local, a economia de Cospaia, por conta das coisas supracitadas, teve um aumento significativo. É importante ressaltar que mesmo com uma república sendo proclamada, o estado de Cospaia nunca realmente existiu, e consequentemente as leis positivas não vieram a aparecer na vila, o que acarretou na vinda de vários “foras da lei” da Itália para morar naquela terra onde ninguém poderia o perseguir ou prender.
Porém, Cospaia não era vista como um lugar importante de início, as coisas iriam mudar apenas no ano de 1574. O tabaco (que foi trazido a Europa nas grandes navegações) se tornou um produto extremamente popular no continente, com uso medicinal para úlceras e até sífilis, mas não só isso, o uso recreativo do tabaco também foi descoberto. E é aí que a ascensão de Cospaia se inicia, sendo o primeiro lugar da Itália a plantar o tabaco, conseguindo vender o produto principalmente aos aristocratas, que possuíam os recursos para comprar e se divertir com a nova moda.
A igreja, no entanto, precisava reagir diante dessa descoberta vinda do “novo mundo”, classificando o tabaco como uma “planta do diabo” e banindo seu uso nas igrejas. O Papa Urbano VIII, em 1642, foi mais longe ainda: excomungou todos os fumantes da Igreja Católica, e os estados italianos acataram a decisão cessando a produção de tabaco.
O que a igreja fez, no entanto, foi um tiro no pé. Cospaia simplesmente ignorou a excomunhão e as decisões do Papa, continuando a produção de tabaco, conseguindo assim o monopólio do produto em toda a península, agora a vila se tornara um dos mais importantes centros comerciais da Itália, com sua riqueza advinda do livre mercado e da produção massiva de tabaco, que aumentava a cada dia. Os cidadãos, livres de leis e de taxas, se preocupavam principalmente com o aumento da própria riqueza, criando um ambiente competitivo sem a interferência do estado.
Porém, a “era de ouro” da vila acabaria no início do século XIX. Com o fim das Guerras Napoleônicas (onde os Estados Papais foram invadidos), o Papa Leão XII decidiu dar fim ao erro fronteiriço que perdurou 385 anos (1441–1826) e deu muita dor de cabeça ao papado, promulgando um ato de submissão da vila aos Estados Papais na presença de 14 representantes da República. A vila seria anexada ao governo de Roma, porém receberiam aval do Papa a continuar produzindo tabaco, a principal atividade econômica dos moradores.
Governo
Cospaia nunca teve um governo como conhecemos hoje, e nem um governo como era comum da época, o que existia em Cospaia era a total ausência de leis positivas, não existia exército ou polícia, os deveres judiciais do dia-a-dia eram feitos numa reunião de famílias e anciões na casa da família Valenti, que por ser a mais importante da comunidade tinha o título de “presidente” a um de seus membros, o que fazia da República de Cospaia uma “monarquia” ao mesmo tempo que essa “República” era uma “anarquia” por não existirem leis ou impostos, e isso faz de Cospaia um lugar único no mundo, lugar esse que se organizou de forma orgânica e independente com a ausência de coerção. A reunião na casa da família Valenti duraria até 1718, quando as reuniões foram transferidas a uma igreja local chamada “Igreja da anunciação”, onde a única “lei” da República permanece até hoje na porta: Perpetua et firma libertas.
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